Poeta, tradutor e traduzido: Cabral transforma as alturas andinas em poesia

Este artículo fue publicado originalmente en la revista Nossa América. Revista do Memorial da América Latina, Nº56 – 2020. pp 54-59.

Nos páramos, o índio-formiga se esgueira pelos caminhos do Chimborazo, com pressa de atravessar o colossal silêncio que captura a paisagem. [Foto: Marcela García]


Vou falar sobre a tradução de Vivir en los Andes, livro que contém dez poemas escritos por João Cabral no Equador. Fiz essa tradução juntamente com o atual embaixador brasileiro no Equador, João Almino, romancista e estudioso da obra de Cabral, a quem considera o mais importante dos poetas brasileiros da segunda metade do século XX. O embaixador João Almino chegou ao Equador no final de 2018 já com a ideia de fazer esse livro.

Então, ao perguntar sobre algum poeta que pudesse trabalhar com ele na tradução desses poemas que Cabral dedica aos Andes equatorianos, alguns amigos falaram de mim. Ousado, respondi, “se for para trabalhar junto com o João, posso fazer a tradução”. A partir de então, tivemos vários encontros de trabalho: ele me dava uma tradução literal do poema e eu a analisava e procurava alternativas poéticas. Fizemos muitas reuniões para traduzir esses dez poemas, que foram publicados antes em Agrestes – é provável que outros poemas desse livro tenham sido escritos no Equador.

João Cabral serviu como embaixador em meu país de 1977 a 1981. Ele era uma pessoa muito tímida e não sabíamos que esse grande poeta estava entre nós; só o conhecíamos por referências. Um amigo meu, que tinha uma pequena livraria perto da embaixada brasileira, contou que Cabral ia sempre lá: era um homem na casa dos 60 anos, bastante educado, um estrangeiro, que se sentava num banco de madeira e ficava folheando livros, sem atrair atenção especial. Até que um dia, um cliente disse: “Sr. Embaixador, como está?”. Só então esse amigo descobriu que se tratava do embaixador brasileiro. E que era o poeta João Cabral!

É muito difícil obter livros de Cabral em espanhol, principalmente no Equador. Quando iniciei essas traduções encontrei, num canto da biblioteca da Universidade Católica, um acervo doado por um romancista equatoriano que havia sido ministro das Relações Exteriores na época em que Cabral era embaixador. Ali havia quatro livros do poeta autografados. Com amigos da embaixada, consegui outros livros em português.

Original de João Cabral, com anotações do poeta.
O poema seria publicado mais tarde, em A escola das facas. [Foto: Acervo João Almino]

A tradução desses poemas geralmente não apresenta grandes complicações, exceto em alguns versos em que Cabral modifica a própria sintaxe do português. São versos especiais sobre os quais eu e João Almino discutimos e concordamos que neles era preferível uma abordagem mais aproximativa, para manter aquelas, digamos, arbitrariedades do poeta.

Os dez poemas constituem a lembrança de uma viagem que o poeta fez ao longo do chamado Corredor Andino. No Equador, a Cordilheira dos Andes é dividida em dois ramais, com pequenas cordilheiras que se unem a esses dois ramais, formando uma espécie de escada. No meio desse corredor se veem os páramos de altura1, a 3 ou 4 mil metros de altitude, com uma terra seca onde é muito difícil cultivar qualquer coisa.

A jornada de Cabral começa em uma cidade chamada Riobamba, no sopé do Chimborazo, a montanha mais alta do planeta. Tem mais de 6 mil metros de altitude em relação ao nível do mar – Quito fica a cerca de 2.900 metros de altitude. O Chimborazo está no lado oeste da Cordilheira e no lado oriental há outra montanha, o Cotopaxi: sua forma é quase a de um triângulo perfeito, se parece com o Monte Fuji no Japão e é possível vê-lo de Quito. João Cabral o via da janela de seu escritório. Quando João Almino chegou a Quito, disse que precisava ver o Cotopaxi, mas a embaixada já não estava no mesmo local e ele não pode apreciar a visão que Cabral tinha quando assomava à janela.

Essas montanhas são vulcões – o Cotopaxi ainda ativo, o Chimborazo, não. Por que estou falando disso? Porque o elemento central da poesia de Cabral certamente é a viagem, a jornada por essas montanhas. Uma viagem em que os poemas vão apontando, de maneira bastante concentrada, a internalização da natureza, além de aspectos antropológicos, característicos do mundo do poeta. Seu olhar estabelece uma combinação fundamental desses picos cobertos de neve, dos páramos, com o índio que de repente surge, com seu poncho, em seu trabalho com as ovelhas… As ovelhas vieram com os espanhóis, na conquista, e vivem nas alturas do Equador. Em parte dos Andes – especialmente no Peru, mas também no meu país – há outros animais, a lhama, a alpaca ou a vicunha, que intrigaram os espanhóis: que bicho é esse, que não é camelo, nem dromedário, nem ovelha? Mas o que João Cabral viu foram rebanhos de ovelhas, porque a criação de lhamas é recente naquela região.

Com seu pico nevado, o Chimborazo é um gigante adormecido. [Foto: Marcela García]

O poeta faz associações entre os animais e a montanha – o Chimborazo lhe parece uma grande ovelha deitada – e também com os índios, sempre trabalhando. Por isso diz “índio formiga”2, pois a formiga é um animalzinho muito pequeno, sempre dedicado ao trabalho. Cabral faz uma comparação – sempre presente na sua poesia – entre as paisagens que vê, nos Andes do Equador como antes em Sevilha, na Espanha, com o Nordeste brasileiro. Associa aquele índio silencioso, que pastoreia as ovelhas, e os vulcões quietos, que não entram em erupção, à paisagem das vastas extensões secas do Sertão nordestino.

Entre esses dez poemas há um em que Cabral fala sobre dois afogados. Um se afoga nas grandes altitudes, onde o ar é rarefeito; o outro está se afogando no mar, na costa de Pernambuco. É uma imagem poderosa, porque é a sensação que ele deve ter sentido nos Andes, onde os que não estão acostumados às grandes altitudes sentem falta de ar, essa sensação de afogamento. Há ainda outro poema no qual ele diz que o índio parece descer das alturas com sua bolsa, em busca de ar3.

Essa sensação de afogamento me leva a estabelecer uma relação muito especial entre João Cabral e Simón Bolívar, o libertador da Venezuela, da Colômbia e do Equador, que também participou da libertação da Bolívia – daí o nome do país. Bolívar fez uma viagem ao Chimborazo por volta de 1822, partindo das planícies do rio Orinoco, em Caracas, onde vivia. Num texto chamado “Mi delirio sobre el Chimborazo”, Simón Bolívar sente esse tipo de asfixia, e a montanha parece lhe dizer que sua tarefa é lutar pela independência da América. O poeta Cabral invoca a figura de Bolívar para dizer também que o destino da América deve ser a unidade para a emancipação de nossos povos – mas, ao mesmo tempo, aponta esse aspecto da anestesia que se sente naquelas alturas dos Andes.

No livro publicado pela embaixada, além dos dez poemas, há um estudo muito importante de Antonio Carlos Secchin, uma apresentação do embaixador e um texto meu. E, ainda, a cópia do original do poema “O junco e o século XVIII”, datilografado com as correções de João Cabral, guardado por um funcionário da embaixada. Esse texto não tem a ver com o conjunto dos poemas sobre os Andes, mas é testemunho de que João Cabral produziu no Equador uma parte significativa dos poemas publicados no livro Agrestes.


Notas:

1. Campos típicos das terras altas dos Andes, caracterizados pela vegetação rasteira e sem árvores.

2. Um dos versos diz: “no ar rarefeito como a vida / vai a vida do índio formiga”.

3. “Quem sabe, anda sempre correndo / para fugir do alto colosso / e descer para as poças de ar / que não pode levar no bolso”.